quinta-feira, 9 de março de 2017

gente de bem com o mal

quem fala o que quer...

Rio de Janeiro, 8 de março de 2017. 9 horas e 35 minutos.
Resolvemos parar numa barraquinha a fim de comer alguma coisa, já que ainda não tínhamos tomado o café da manhã. Tivemos de resolver uma questão no Tanque, zona oeste do Rio de Janeiro, e estávamos voltando pra casa.
À parte: Em geral, gostamos do café da manhã das barraquinhas, são excelentes e tem muita variedade a preços pra lá de populares. Indicamos, inclusive, uma ao lado do terminal BRT de Madureira, em frente à estação do trem, que tem até uns lances fritos na hora, simplesmente apetitosos. Quem não é fã de coisas gourmet vai chorar de emoção ao comer e beber... Já onde estávamos, a barraca não tem o mesmo requinte, é mais modesta, mas seguia um padrão bem típico. Pães embrulhados no papel alumínio e bolos numa cestinha, além das indefectíveis garrafas Termolar coloridas, cada uma com um líquido (café puro, pingado, chocolate, sucos, etc.).
No momento em que iríamos perguntar os preços dos itens, uma voz feminina nos chamou a atenção, embora não tivesse sendo dirigida diretamente a nós, e nos fez calar:
_ Bom dia senhorrr, tudo bem com o senhorrrr?_ Ela estava simulando de forma francamente supérflua um sotaque que poderia ser de qualquer localidade, mas a julgar pelo que repararíamos quando olhamos pra ela, não era bem um portunhol e sim um inglês pra lá de fuleiro – nem quem não domina a língua anglo-saxã se expressaria tão mal.
_ É, porque é um bom dia apesar de tudo_ ela abandonou o "sotaque", já que nem o camelô nem nós demos créditos algum àquilo (se é que ela estava levando em conta nossa presença até então)_ Porque esse país tá cada vez pior, cada vez mais difícil viver aqui, com essa roubalheira, esse...
Foi nesse momento que resolvemos radiografar e analisar aquela mulher que estava falando sem parar. Aparentemente 45 anos, branca, cabelos cortados à altura das orelhas, não muito gorda e talvez 1,60. Ela estava usando uma blusinha dessas de alça bem fininha e era justamente entre o seio esquerdo e o ombro que havia o que nos chamou a atenção em definitivo: uma bandeira dos Estados Unidos tatuada em cores muito vivas, embora parecesse ser antiga, e logo abaixo a sigla "USA".
Fixamos o olhar naquela tatuagem por instantes, enquanto aquela voz, tão desagradável quanto o tom que ela usava pra falar, continuava:
_ Pois é, cada país tem o povo que merece [notem essa curiosa inversão no famoso dito popular], isso aqui tem mais jeito não... Paisinho medíocre, de gente medíocre, que só elege gente medíocre, por isso o Brasil tá assim, essa vergonha!
O camelô a essa altura não nos deu maior atenção porque estava escutando aquele discurso em silêncio. Difícil precisar se ele concordava com tudo aquilo, mas pelo que sentimos, ele estava se incomodando, mas como se trata de potencial cliente... Sim, é duro escrever isso, prezadas e prezados, mas é fato...
_ E o Carnaval? Ninguém tem dinheiro pra nada, mas chega carnaval vão encher a cara de cerveja... Pra que fantasia, somos todos um bando de palhaços o ano inteiro, fantasia pra quê? Agora que acabou o carnaval, todo mundo sem dinheiro, já que gastou tudo em bloquinho... E os palhaços reclamando da vida! Eu dou risada desses trouxas, hahahaha!
Então ela parou de falar do Brasil e, sem propor sugestões de mudanças, perguntou o que tinha pra comer.
_ É isso, é Brasil-sil-sil!!!_ completou, debochada. Foi quando respiramos pesado, ainda olhando pra ela. E ela notou. O camelô também, tanto que nos perguntou se comeríamos alguma coisa, talvez temendo alguma pancadaria. Respondemos em forma de indagação o que tinha e quanto custava cada item, sem tirar os olhos da infeliz. A essa altura nossa ira já era total e nossa expressão facial já entregava de bandeja o que pensávamos de toda aquela torrente de sandices vindas daquela infeliz.
Foi quando ela disse a palavra decisiva:
_ É meu filho, eu falo mesmo, a gente que é de bem é que sofre...
Sabem aquele momento em que você é tomado por uma surdez repentina e parece que um turbilhão se forma na sua cabeça e você se sente aéreo? Foi como nos sentimos ao ouvir aquela expressão. "Gente de bem"... Sentimos uma urticária feroz ao ouvir aquelas palavras e nossa respiração ficou ainda mais pesada. Alergia ou choque anafilático?
Não conseguimos manter o controle, amigas e amigos. Rimos debochados, olhando firmemente pr'aquela criatura. Ela evidentemente ficou pê da vida:
_ Tá rindo é, tem que rir mesmo, isso é muito sério! Paisinho de gentinha de mer#$%@a!!!_ Então gargalhamos. Ela notou que era de escárnio para com ela e se enfureceu:
_ Tá rindo de quê, tá rindo da minha cara, é???
Balançamos a cabeça, como quem recrimina uma criança (tsc, tsc, tsc...), e resolvemos sair dali o quanto antes. E aí ela relinchou aos berros com muita indignação algo que, se nos conhecesse, jamais relincharia:
_ Deve ser algum petralha, vai, ri mesmo, sou brasileira e amo meu país e não tenho medo de comunista, fique sabendo disso!
Inesperadamente, nos voltamos pra ela, olhando nos olhos e um passo à frente, e respondemos com voz firme, mas cheia de raiva, o que nos veio à cabeça naquele momento:
_ Não sou comunista, sou bairrista_ e desviamos de forma feroz o olhar pra tatuagem dela e voltando dentro de seus olhos:_ E minha bandeira, que é a do Rio de Janeiro, só tem duas estrelas!_ E fomos embora, sem olhar pra trás.
O festival de relinchos que se seguiu não é digno de nota, e nem mesmo prestamos muita atenção neles, então nem dá pra reproduz-los.
O fato é que quando seguimos pela Geremário Dantas, em direção ao BRT, nos demos conta dum perigo que poderia ter nos custado alguma coisa de sério. Passou pela nossa mente que aquela mulher poderia ter chamado atenção de alguém, e que esse alguém poderia ter tomado as dores dela, e corrido atrás de nós. E que ela poderia inventar alguma besteira que não dissemos, tendo o camelô como "testemunha", logicamente coagido. E tudo isso num dia como o de ontem, o Dia Internacional da Mulher. Seria o suficiente um linchamento moral sem tamanho, onde nos passaríamos por machistas e tudo o mais.
Pode parecer exagero de nossa parte, mas não é. Lembrem-se de que pessoas sem escrúpulos agem exatamente assim, como covardes que são. Ou então, por que as panelas permanecem em silêncio ante toda essa implosão de nosso país?
Um texto como esse deve fazer muitos que nos conhecem há tempos pensar que se trata d'alguma crônica de ficção baseada (ou não) em fatos reais, como escrevíamos nos anos 1990. Quem dera que fosse, camaradas... Pois aconteceu conosco ontem pela manhã e só não nos pronunciamos antes porque tínhamos muitas atividades e ficamos sem tempo.
Ontem ficamos frente a frente com o "inimigo". Frente a frente com o mais perigoso de todos os brasileiros: a tal "pessoa de bem". E confessamos: sentimos medo quando demos as costas àquela meliante (quase o mesmo medo de Regina Duarte...). Erramos. Sabe-se lá o que ela poderia ter feito? Lembramos que é recomendável que nunca reajamos em face do perigo, mesmo estando armados. Bom, nós reagimos. Sem gritar, mas com voz firme. Contudo ainda estamos vivos. Graças aos orixás.
E o mais impressionante em tudo isto é que essa mulher não sabe quem somos, nunca nos viu, nem mesmo do que somos capazes. Mesmo assim, não pensou duas vezes em destilar seu preconceito contra nós, nos julgando sem ao menos nos dar chances de uma justificativa, se fosse o caso. 20 anos atrás seria constrangedora uma abordagem tão insana quanto essa (que nos lembrou e muito o caso que contamos um tempo atrás chamado "O pernambucano paraguaio", onde também fomos vítimas de preconceito de etnia e de classe). Hoje não há mais máscaras: os cretinos agem sem se preocupar. Certeza da impunidade por pertencer a um grupo que se blinda com facilidade e que julga os outros pelo que os outros aparentam?
Assim finalizamos esse relato, alertando a todos que militem sem trégua, mas tomem cuidado quando o assunto for lidar com "gente de bem". Nem mesmo os achaques das autoridades políticas ou policiais são mais apavorantes que as palavras daquela gentalha tão bem representada como foi por aquela mulher. Não duvidem: são pessoas como ela que certamente seriam capazes de atirar em nós, só de nos vir num banco da praça, por desconfiar de nosso caráter, se o porte de armas fosse totalmente liberado, atendendo aos interesses da maldita "bancada (ou cambada) da bala". Como um Minority Report às avessas...
Nunca esqueceremos aquela maldita bandeira tatuada nem aquele asqueroso "USA". Graças ao discurso de ódio ao Brasil daquela mulher. Um discurso de uma virulência que nem mesmo nós, que nos dizemos muito mais cariocas que brasileiros, temos.
"E se fosse outra bandeira?", perguntam-nos os incautos, e obviamente a "outra bandeira" pensada seria a de Cuba, Venezuela, Coreia do Norte...
Ora, muito simples! Não advogaremos em causa própria, já que as tais bandeiras são sempre associadas à esquerda (seja pelo comunismo, seja pelo socialismo). Responderemos pelo viés capitalista mesmo: não poderia ser a da Suécia?
Beijos e abraços fraternos a todas e todos!!!


EM TEMPO: Acabamos por tomar café num botequim na Praça Seca...



3 comentários:

Unknown disse...

Se tivesse a bandeira do Brasil tatuada até poderia ver de outra forma. Mas a dos EUA realmente não dá.

Raphael disse...

Relato bizarro mas cada vez mais comum... esses ataques de ódio e esse desenterrar da guerra fria daqui a pouco farão vítimas próximas a nós...
uma vez, estava caminhando com um casaco vermelho e ouvi um berro de um carro: comunista!
Rapidamente procurei verificar o entorno para ver se corria perigo real.
A que ponto chegamos...
Obs: também conheço uma pessoa que tem a bandeira dos states tatuada...

Unknown disse...

Realmente gente de bem muito perigoso. Temos que manter a cabeça erguida, mas temos que tomar cuidado.