Sobre o
PT e a esquerda no poder:
JORGE
ALEXANDRE ALVES – Sociólogo e Professor[1]
Antes de mais
nada, até por honestidade intelectual, devo dizer que fui filiado ao PT do
final da adolescência até sair da universidade. Participava das discussões mais
abrangentes na UERJ, e colaborava numa ou noutra campanha eleitoral. Na
universidade admirava figuras como Milton Temer, Leo Lince, Chico Alencar e
Eliomar Coelho. Como nunca me juntei a um núcleo, acho que fui desfiliado com o
tempo. Há algumas eleições tenho votado no PSOL em eleições proporcionais e em
cargos majoritários no primeiro turno. Todavia não sou filiado a nenhum partido
e considero que o PT ainda tem excelentes quadros. Contudo, infelizmente não
acredito que a esquerda brasileira hoje tenha um projeto consistente de Estado
para a sociedade brasileira. Isso posto, procuro fazer nas linhas que se seguem
uma análise da trajetória do PT desde a eleição de Lula, em 2002, até o
presente momento, poucos dias após a ruptura institucional realizada pelo nosso
parlamento.
Inicialmente, é
preciso dizer que todo partido de perfil libertário, seja ele revolucionário,
socialista, trabalhista ou de base popular, que se propõe a ser um partido de
massas, corre um risco. O da sua burocratização excessiva através de seu
próprio processo de institucionalização. Tal fenômeno congela sua militância e
acomoda atores sociais relevantes dos chamados “movimentos sociais” na cômoda
posição de dirigentes partidários ou de agentes do Estado. Até mesmo os
partidos do espectro da clássica socialdemocracia europeia estiveram sujeitos a
isso. Basta vermos o que ocorreu na Itália década passada, na Espanha com o
PSOE ou com o PASOK grego mais recentemente. Outro risco é ceder ao canto da
sereia da corrupção, como ocorreu com antigo Partido Socialista Italiano, cujo
principal líder, Benitto Craxi, ex Primeiro-Ministro, morreu em autoexílio na
Tunísia porque foi condenado pela justiça da Itália por desvios em sua gestão
no Poder Executivo italiano. Seu partido, o PSI, desapareceu do cenário
político de seu país em função do terremoto provocado por tais denúncias de corrupção.
E as esquerdas, desde então (mais de vinte anos) jamais conseguiram obter
maioria parlamentar e formar um novo gabinete na Itália.
Tal fenômeno
costuma ocorrer na medida em que esse partido intensifica sua presença de forma
orgânica, elegendo representantes/parlamentares e quando passa a exercer o
poder executivo. Estes são elementos característicos da democracia
representativa de cunho liberal (aqui mais na acepção política do termo do que
do uso econômico que nós fazemos comumente), a qual o Estado brasileiro está
mais próximo em sua organização. Ao conquistar o poder central sem
necessariamente ter um projeto de Estado muito bem definido, os efeitos da
burocratização partidária podem ser potencializados e bastante acelerados.
A
institucionalização de um partido político nas modernas democracias talvez seja
um fato inevitável dentro do exercício perene da atividade política. Mas fato é
que, exceto os partidos de esquerda escandinavos (na Suécia e na Dinamarca hoje
estão fora do poder) e talvez o SPD alemão (que raramente esteve no poder
central por longo tempo), em todos os demais países a esquerda entrou em
parafuso em algum momento da sua história e acabou perdendo espaço e capacidade
de seduzir o eleitorado. Mais recentemente o PSOE espanhol se vê dividindo a
cena política da esquerda castelhana com o novíssimo PODEMOS.
O Partido do
Trabalhadores talvez tenha sido a experiência mais original, profunda e, por
que não dizer, bonita, no sentido da criação de uma prática política de caráter
popular, constituída na história da América Latina. Angariou sonhos e esperança
de milhares de trabalhadores, estudantes, intelectuais, gente de igreja, de
sindicatos, de organização de bairros de cooperativas, dos movimentos
feminista, LGBT, negro, indígena e tantos outros. Foi radical no bom sentido da
palavra. Cresceu a base de um forte processo de democracia interna. Tornou
anacrônica as práticas políticas (muitas vezes de cunho personalista) do PDT de
Leonel Brizola, herdeiro político da esquerda pré-ditadura militar. Não se pode
pensar na esquerda após o regime militar em nosso país sem ter o PT como
referência de práxis, de organização partidária e de catalizador de demandas e
aspirações de origem popular. Daí também o impacto causado em todo campo
popular e nas esquerdas pelas contradições políticas que constatamos a partir
da chegada de Lula à presidência da república, em 2002. Nesse caso, aquilo que
hoje ocorre negativamente com o PT acomete a todo o campo popular e à esquerda
brasileira, e pode ter sérias implicações nos próximos pleitos eleitorais neste
ano (eleições municipais) e sobretudo em 2018. A menos que a economia ajude,
coisa hoje que parece ser difícil de acontecer.
Então, as
razões da crise do modo petista de governar estão também na forma como se
consolidou seu processo de institucionalização enquanto partido político. Aqui
temos dois elementos que devemos levar em consideração para que possamos
entender o que ocorreu com o PT. O primeiro é interno: o partido formou
um a geração inteira de profissionais da estrutura partidária, que, mesmo que
originalmente tivesse alguma forma de militância, essa foi se aplainando com o
tempo dando lugar a uma ocupação na estrutura do partido. É o processo de
burocratização que deu base a uma intelligentsia petista, sobretudo após a
conquista da presidência por Lula em 2002.
Em segundo
lugar, do ponto de vista da sua capacidade representativa o PT foi incapaz de
ampliar sua base de representação política de forma significativa, sobretudo no
Poder Legislativo. E dentro de uma democracia, sem apoio parlamentar nada se
faz, em termos gerenciais, no âmbito estatal e de governança das políticas
públicas – a menos que se consiga mobilizar a opinião pública e setores
significativos da sociedade civil. Tal aspecto se reforça mais considerando as
peculiaridades do nosso sistema presidencialista – a incapacidade nacional de
um segmento político atingir maioria parlamentar de forma não precisar de
outras matrizes políticas para exercer o governo. Trocando em miúdos, o PT
sozinho (ou mesmo a esquerda) nunca conseguiu aumentar o tamanho de suas
bancadas na Câmara do Deputados (e mesmo em assembleias legislativas ou câmaras
municipais de grandes cidades) a ponto de alcançar algo próximo de uma maioria
absoluta em termos parlamentares. Para conseguir governar, é necessária uma
política ampla de alianças para além do espectro ideológico. O que torna nosso
sistema político uma espécie de Presidencialismo de Coalizão. Se preferirmos
uma análise que parta dos fundamentos teóricos de Karl Marx, tratar-se-á de uma
estratégia das classes dominantes de continuar a exercer poder político,
impedindo as classes trabalhadoras de promoverem profundas transformações
sociais que comprometesse significativamente os interesses dos que estão no
topo da pirâmide social.
O filósofo
marxista A. Gramsci operava com um conceito de Bloco Histórico e de Hegemonia.
Dizia ele que somente alcançando hegemonia era possível produzir uma série de
transformações sociais profundas e significativas a ponto de se constituir um
novo bloco histórico. Para tanto seria fundamental conquistar espaços
significativos da sociedade civil e ter um contingente suficiente de
intelectuais orgânicos (agentes transformadores da realidade), com poder de
formar opiniões de forma a conseguir mudar mentalidades e convencer a maioria
da população. Bom que se diga que tais mudanças profundas somente foram
possíveis pela via democrática somente no Chile de Allende (abortada logo
depois por um golpe militar) e nos países escandinavos. As demais formas, mesmo
que depois elas tenham desembocado em regimes democráticos de base popular como
ocorreu na Península Ibérica e na Grécia, se deram pela via revolucionária, com
forte ruptura institucional.
O caso do PT
pode ser explicado por essas categorias. Entre 2003 e 2005 o PT esteve muito
perto de obter essa hegemonia na esfera federal, por conta de três aspectos
significativos. O simbolismo envolvido na história pessoal de Lula, o primeiro
presidente da história brasileira oriundo das classes populares, migrante, de
baixa escolaridade, operário. O segundo aspecto foi o desgaste provocado pelos
anos de políticas neoliberais iniciadas sob Collor de Mello e radicalizadas no
governo tucano de FHC a partir da estabilização econômica e com o processo de
privatização das empresas públicas. E, fundamentalmente, pelo engajamento de
amplos setores sociais pela eleição do principal líder do PT e da esquerda à
Presidência da República.
Entretanto, o
próprio movimento interno de burocratização do partido e de suas táticas
políticas para poder exercer o governo e obter maioria parlamentar acabaram por
gerar, em grande parte, o efeito oposto. A este fenômeno podemos associar o
sistema eleitoral brasileiro que favorece o personalismo político, o
troca-troca de cargos como contrapartida por apoio parlamentar e o esvaziamento
ideológico de boa parte das legendas brasileiras. Tal fisiologismo político
culmina no fortalecimento do nosso bizarro Presidencialismo de Coalização.
E alguns dos elementos que indicam essas contradições já estavam
presentes no partido antes mesmo da eleição de Lula, como veremos a seguir.
O processo que
culminou na escolha do candidato petista ao Governo do Rio de Janeiro em 1998
pode ser tomado como exemplo dessa institucionalização partidária que, em nome
de uma realpolitik voltada para conquista do poder executivo, desconsiderou a
democracia interna do partido. Naquela ocasião, a convenção estadual optara
pela candidatura de Vladimir Palmeira, ex-líder estudantil, em detrimento de
uma aliança com o Anthony Garotinho, então do PDT. Em função das eleições presidenciais,
a executiva nacional do PT passou por cima do resultado da convenção e
ratificou a aliança com o PDT, apoiando Garotinho e formando chapa com a então
Senadora Benedita da Silva.
A partir dessas
eleições algumas campanhas petistas passaram a contar com “militantes pagos”:
gente que recebia uns trocados para agitar bandeiras do PT e distribuir
panfletos. Este que vos escreve presenciou isso no prédio em que morava, em
Quintino. Um amigo e vizinho morava numa pequena vila nos fundos deste prédio.
Ele era militante participativo, assessor de gabinete de um ator e vereador
petista. Em nome da “senadora” ele fez de sua casa comitê de campanha e um
grupo de pessoas que nunca tiveram nenhuma ligação com militância faziam
campanha alegremente e, ao final do dia acorriam a casa deste vizinho para
receber... Ao ser questionado, ele disse que era uma tática para garantir sua
vitória. E eu fazendo a campanha por motivação ideológica e pastoral...
Tais episódios
exemplificam que o processo de burocratização do PT o tornaram politicamente
mais pragmático e lentamente o afastou, na prática, de vários elementos de seu
ideário inicial. De um partido de aspiração socialista, o PT foi se tornando
proponente de teses sociais-democratas até se propor em ser um partido que administraria
o capitalismo como, com outras palavras, afirmara o Senador Cristovam Buarque,
durante a campanha eleitoral de 2002. Jorge Castañeda, Cientista Político
e Diplomata mexicano, em um livro sobre as esquerdas latinoamericanas de meados
dos anos 90, já sinalizava esse processo, embora visse com esperança a
possibilidade do PT se consolidar um partido de massas de inspiração
socialdemocrata, que alavancasse processos semelhantes por todo continente, e
melhorasse a vida da população. Em parte ele até acertou, mas os processos
ocorridos em outros países onde o campo popular conquistou o poder central
guardam grandes diferenças em relação ao caso da esquerda no Brasil.
Às vésperas das
eleições o PT tornou público um manifesto chamado “carta aos brasileiros” no
qual se comprometia em não alterar os fundamentos macroeconômicos, respeitar os
contratos e garantir a liberdade de imprensa. Em outras palavras, isso
significou um aceno as elites empresariais brasileiras de que, uma vez na
presidência, Lula não realizaria mudanças estruturais significativas,
principalmente na atividade econômica brasileira.
Pouco tempo
após a posse de Lula, o sociólogo Francisco de Oliveira publica um texto
chamado “Ornitorrinco”, em que critica os fundamentos econômicos do estado
brasileiro. Mais, diz que com a ascensão do PT à presidência chega ao poder uma
nova classe de dirigentes do capitalismo brasileiro, os gestores dos fundos de
pensão e de recursos públicos. Paradoxalmente, o Fundo de Amparo ao Trabalhador
é o maior financiador do capital privado do Brasil. Ácido em sua crítica, Chico
de Oliveira é categórico em dizer que: “parece que os dominados dominam, pois
fornecem a ‘direção moral’ e, fisicamente até, estão à testa de organizações do
Estado, direta ou indiretamente, e das grandes empresas estatais. Parece que
eles são os próprios capitalistas, pois os grandes fundos de pensão das
estatais são o coração do novo sistema financeiro brasileiro, e financiam
pesadamente a dívida interna pública. Parece que os dominados comandam a
política, pois dispõem de poderosas bancadas na Câmara dos Deputados e no
Senado”. (...) “Enquanto as classes dominadas tomam a ‘direção moral’ da
sociedade, a dominação burguesa se faz mais descarada”. Em termos
macroeconômicos, manteve-se boa parte dos fundamentos econômicos instituídos
nos anos FHC. O desmonte da nação para usar um termo consagrado por Ivo
Lesbaupin (professor emérito da UFRJ e membro da ONG ISER-Assessoria) não foi
revertido.
Ao mesmo tempo,
uma injunção de políticas públicas resgatou aspectos do desenvolvimentismo
característico da política produtiva brasileira de toda a segunda metade do
século XX. Curiosamente, Lula em determinados momentos resgatava um discurso
sobre o “Brasil Grande” que caberia muito bem num discurso de Geisel a respeito
da Transamazônica ou da Ponte Rio-Niterói. Belo Monte que não me deixa
mentir... O crescimento econômico brasileiro experimentado na segunda metade da
década passada não dinamizou nosso parque industrial e aprofundou o perfil do
país como exportador de commodities agrícolas, de Petróleo e de minerais.
Antes mesmo das
eleições, o PT lamentavelmente já dava sinais de que não realizaria mudanças
profundas a ponto de inaugurar um novo bloco histórico na sociedade brasileira,
mesmo tendo nas mãos a possibilidade de construir uma hegemonia como “nunca
antes na história desse país”. Como já foi dito, isso numa democracia de cunho
liberal-representativo, passa por obter uma maioria parlamentar capaz de
garantir mudanças institucionais significativas a partir da gestão do Estado.
Seria injusto afirmar que o Partido dos Trabalhadores não produziu política
públicas nessa direção, mas elas não alterariam profundamente a estrutura
produtiva do capitalismo brasileiro, a despeito das políticas de renda mínima,
dos significativos recursos aplicados no SUS, e na expansão da rede federal de
ensino - tanto em nível universitário quanto em nível médio, principalmente a
partir do segundo mandato presidencial petista.
Por outro lado,
não podemos negar que a inclusão de milhões de pessoas no que se refere ao
acesso a bens de consumo – a valorização do salário mínimo potencializou esse
fenômeno - ajudou a movimentar o mercado interno e promoveu certa
ascensão social de um número gigante de pessoas que historicamente sempre foram
tratados como cidadãos de segunda classe. No entanto, todas essas importantes
conquistas eram insuficientes para ampliar esse rol de mudanças populares pois
pouco mudaram a estrutura econômica do país. No fundo, o que houve foi uma
expansão dos setores médios às custas da ampliação da oferta dos ensinos
profissionalizante e superior, da ampliação de postos de trabalho no setor de
serviços e na realização de uma enorme quantidade de obras públicas tocadas
pelas principais parceiras dos gestores públicos no Brasil: as grandes
empreiteiras.
Uma hipótese
plausível que pode explicar as razões políticas pelas quais o PT não conseguiu
operar mudanças profundas no país está numa possível ausência de um projeto de
sociedade e de um modelo de Estado por parte do partido. Na verdade talvez
fosse mais preciso dizer que projeto estava posto nos documentos do PT, mas ele
foi, na medida em que o tempo avançava, deixado de lado em nome de,
primeiramente, fazer de Lula presidente e, uma vez alcançado esse intento, manter
o PT no poder central do Brasil. O chamado núcleo duro do primeiro mandato
(Genoíno, Palocci, Tarso Genro, Berzoini, Bittar e Dirceu) adotou um
pragmatismo em termos de alianças políticas que muito extrapolou os limites
ideológicos estabelecidos antes pelo próprio partido, cujo preço o PT paga até
hoje. Isto foi o reconhecimento de que o PT alcançara seu teto em termos de
representação no Congresso Nacional? O PT foi vítima de um sistema
político-eleitoral montado nos estertores da ditadura civil-militar, mas que
dificulta ao máximo a consolidação de partidos ideologicamente definidos? Uma
terceira opção talvez seja mais apropriada para explicar esse processo.
Há algum tempo
já era possível observar que, mesmo com o sucessivo crescimento da bancada parlamentar
petista em nível federal até 2006, duas coisas impediriam ao partido ampliar
sua base social e eleger mais deputados e senadores. Uma foi a burocratização
do PT, a outra está relacionada a capacidade de comunicação do partido com
segmentos populares que não estão na órbita do que chamaríamos de militância
político-social. Partidos de esquerda as vezes tendem a falar apenas para “os
seus”. Já a massa tem dificuldades em entender esse “discurso militante”, mais
forte em candidatos ao parlamento. Logo, não vai votar nesse perfil de
candidato. Lula conseguiu superar esse limite e fazer sua sucessora porque é um
habilíssimo comunicador, dono de um enorme talento político e de grande
sensibilidade em perceber as demandas populares, construindo forte identificação
com o “povão”. Possivelmente está – apesar de sua baixa qualificação acadêmica
- entre os mais importantes estadistas brasileiros. Por outro lado, mais uma
vez tivemos um chefe de executivo que foi visto como messias redentor da
pátria. Mais ainda, nem todos os seus predicados o eximiram de equívocos
políticos.
No primeiro
mandato, Luís Inácio da Silva fez uma opção aparentemente democrática, mas que
foi a grande armadilha na qual caiu PT no contexto do presidencialismo de
coalização. O abandono da opção em mobilizar a classe trabalhadora através de
políticas que promovessem a democracia direta e controle público da gestão do
Estado pela opção de obter hegemonia parlamentar com os atores políticos lá
instalados. Em miúdos, quando o PT poderia ter se voltado as suas bases para
organizar os trabalhadores, ele fez a opção em tornar o PMDB o grande avalista
de seu governo, acolitado por outras agremiações duvidosas como o PTB, o PP, o
PSD e o PR. E diga-se, muitas vezes relegando a um papel secundário outros
partidos políticos com quem sempre esteve ideologicamente mais afinado. Como o
PMDB não é exatamente um partido político do ponto de vista ideológico, mas um
condomínio de interesses (nem sempre convergentes) regionais, figuras nefastas
como Jose Sarney, Jáder Barbalho e Renan Calheiros passaram a ser fiadores do
governo federal.
Frei Betto
relata numa de suas publicações mais recentes (o livro “Calendário do Poder”)
como o governo relegou ao ostracismo o Programa Fome Zero, cuja fiscalização
dos recursos e aplicação dos mesmos ficava a cargo da sociedade civil,
mobilizando a população, para ampliar o ótimo Bolsa Família. Porém neste caso,
a distribuição das bolsas e fiscalização dos recursos ficavam a cargo das
prefeituras, refletindo uma opção pelos partidos da base aliada, gerando
problemas relacionados à corrupção.
Aliás, a
dependência do PT da base aliada, sobretudo do PMDB, em doses cada vez maiores,
produziu um efeito deletério sobre sua militância. O caso do Rio de Janeiro é
emblemático mais uma vez porque em nome da governabilidade nacional,
transformou-se a organização partidária local e regional numa correia de
transmissão dos interesses do PMDB (de Cabral, Paes e Picciani), em que pese a
honestidade e a dedicação sincera da maioria de seus filiados e a existência de
parlamentares dignos e combativos no PT, que realizam um profundo trabalho de
conscientização política com suas bases. Certamente tal fenômeno deve se
reproduzir em outros Estados da Federação.
Uma vez
desmascarados os esquemas do mensalão e a investigações recentes da operação
lava-jato, em que pesem toda a perversa atuação da grande imprensa – operando
muito mais como partido político ou como aliada da oposição de direita, é fato
que o PT foi incapaz de fazer uma autocrítica e de punir severamente quem dos
seus quadros se envolveu com a corrupção. Além disso, na medida em que cessaram
os recursos, a rebeldia da base governista se tornou maior, impondo ao governo
algumas derrotas, como foi no caso da CPMF e na eleição de Eduardo Cunha para
Presidente da Câmara dos deputados. Mais recentemente, a grande imprensa vem se
esforçando em vincular o ex-presidente Lula com imóvel em nome de uma
empreiteira. Até agora o que se tem são ilações veiculadas sistematicamente,
sem nenhuma prova concreta ainda.
Sobre isso,
basta dizer que o papel da grande mídia, capitaneada pelas Organizações Globo,
o Grupo Folha de São Paulo e a Editora Abril (Revista Veja) tem sido, para ser
delicado, bastante discutível. O setor de comunicações privadas do país é o
maior e mais poderoso oligopólio que se produziu no país. E o fluxo de
informações disponibilizadas para a população atendem diretamente aos
interesses econômicos dos seus donos e de suas visões políticas. Dessa forma
eles apoiam, as custas da morte do bom jornalismo, grupos políticos dispostos a
defender ou não mexer com seus interesses, como fizeram Sarney nos anos 80 e
FHC em seus dois mandatos presidenciais. Infelizmente, confunde-se liberdade de
expressão com liberdade irresponsável das empresas jornalísticas. Portanto,
quaisquer projetos políticos de perfil popular, de esquerda e que contestem a
forma como o acesso a informação está organizado no Brasil será retaliado de
forma sistemática por esses empresários de mídia que não querem ver em risco seus
privilégios e benesses.
Mas mesmo na
questão da imprensa, o PT foi, no mínimo ingênuo. Perdeu força popular e
autoridade para regulamentar a mídia brasileira, como bem fez a Lei de Medios
na Argentina. Além disso não executou a dívida que a Globo tem com o BNDES. E
achou que, por chegar ao poder federal, iria ser tratado como um igual pelas
elites dirigentes desse país: Os grandes banqueiros, a alta burguesia
industrial, os grandes comerciantes e os latifundiários. Aliás, estes grupos
vêm a liderança petista como intrusos e se identificam muito mais com os
partidos de centro-direita, sobretudo o PSDB (filho ingrato do PMDB), o PMDB e
o DEM (ex- UDN, ARENA e PFL). Acreditou-se que esses grupos seria cooptáveis
quando, na verdade, eles são os cooptadores.
Apesar de ser
muito ruim e desqualificada, a oposição de direita ao governo federal
conseguiu, com forte apoio da grande mídia, fazer emergir um discurso
extremamente conservador, com teses de extrema-direita inclusive. Críticos dos
direitos humanos, homofóbicos, defensores do autoritarismo e de um Estado
policial e, no extremo de espectro, grupos defensores da “superioridade
branca”, fascistas e neonazistas agora defendem teses publicamente
inadmissíveis de serem expostas para a coletividade 15 ou 20 anos atrás, ainda
que seus defensores já estivessm por aí. Esse fenômeno, por razões distintas, é
observável em todo o Ocidente. No caso brasileiro, as manifestações de Junho de
2013, oriundas sobretudo de uma demanda muito específica (o transporte público)
foram o palco da insurgência desses grupos conservadores. Estes acabaram por
pautar parte daquelas manifestações e de exercer ascendência sobre parcelas dos
manifestantes, sobretudo os da tradicional classe média, moradora das áreas
mais nobres das grandes metrópoles brasileiras.
Bom que se diga
também que uma parcela dos jovens preferem outras formas de mobilização popular
que não a política partidária ou o movimento estudantil tradicional. Isso não
significa que eles não tenham aspirações e que não desejem ter voz e vez. Ao
contrário, a resistência organizada dos estudantes nas escolas estaduais
paulistas contra o plano de reestruturação escolar proposto de forma
autocrática pelo governo do PSDB mostra exatamente o contrário. Considerar essa
juventude de forma genérica, como massa amorfa e homogênea, além de alienada,
constitui grave erro político que o campo popular, na atual correlação de
forças, não pode se dar ao luxo de ter.
Diante de tudo
o que foi exposto, hoje temos um quadro político em que as bases de sustentação
parlamentar do governo federal estão corroídas, ao mesmo tempo em que os
movimentos sociais organizados são incapazes de mobilizarem contingentes
significativos às ruas, divididos entre a crítica aberta, a crítica velada para
não se parecer com os ataques da grande imprensa, e o apoio cego tal qual um
torcedor fanático pelo seu time de futebol. O governo Dilma ficou desacreditado
por causa dos problemas econômicos (que em outro contexto não teriam o impacto
que tem) acentuados por uma crise política causada exatamente pela forma como
os governos petistas constituíram sua base parlamentar e pelos desvios éticos
de seus agentes no comando das empresas estatais, em certas circunstâncias
sequestradas por esquemas ilegais de financiamento de campanhas eleitorais para
os partidos que apoiam a coalizão governista.
Ao mesmo tempo,
é bom dizer que tais esquemas existem desde o Regime Civil-Militar de
1964-1985, e que os atuais partidos que fazem a oposição de direita sempre se
beneficiaram desses esquemas e de outros muito mais graves em termos de
recursos e de amplitude, como foi o processo de privatização da maior parte das
empresas estatais nos anos noventa. Aliás, partidos de direita até hoje se
locupletam desse tipo de esquema, como já foi denunciado no caso de Furnas,
envolvendo diretamente o PSDB. No entanto, a imprensa faz questão de abordar o
tema como se isso fosse uma invenção recente, como se a corrupção fosse obra
inventada pelo PT. Ao contrário, a própria grande imprensa, quando interessava economicamente
aos seus donos, também apoiou e participou de tais esquemas. O Brasil realmente
não é para principiantes porque aqui até mesmo partido de oposição mantém
esquema de propina para financiar campanhas eleitorais nos mesmos moldes do
tempo em que eram situação...
É neste
contexto que se colocou a questão do impedimento da Presidenta Dilma. A tese do
Impeachment, embora defendida por juristas de matriz conservadora, não se
sustenta. Pode-se fazer todas as críticas à Dilma Rousseff como gestora ou na
forma como ela conduz o governo politicamente, mas ela tem sido até agora
ilibada e honesta. Logo ela não pode sofrer processo de Impeachment a menos que
se obtivessem provas de algum desvio de conduta da presidente. As comparações
com Fernando Collor de Mello são incabíveis aqui. A acusação de crime de
responsabilidade por causa de uma manobra contábil que a mídia noticiou como
pedalada fiscal é um grande sofisma jurídico. As tais pedaladas fiscais são um
artifício usado pelo Poder Executivo para maquiar o balanço fiscal do Estado. O
Tesouro Nacional deixar de repassar recursos para bancos públicos e autarquias
como o INSS. Para não deixar de pagar os benefícios sociais, aposentadorias e
pensões, os bancos usam dinheiro próprio até que o Tesouro Nacional regularize
os repasses. Esses atrasos não costumam passar de 20 dias.
Todos sabemos
que o impeachment enquanto mais grave medida do nosso ordenamento jurídico está
na constituição. Justificar o processo instalado na Câmara dos Deputados com
esse tipo de argumentação é, no mínimo, cretino. Afinal de contas, não é porque
existem cadeias e por existir a polícia para prender meliantes que vamos
encarcerar um estudante que matou aula. As pedaladas fiscais são um artifício
criticável e pouco honesto sim, mas isso não pressupõe crime de
responsabilidade, condição sine qua non para que se possa abrir procedimento
com vistas a impedir a continuidade de um mandato legitimamente eleito. É como
se punisse com um cartão vermelho o atleta do futebol que cobrasse um arremesso
lateral com o pé em cima da linha que limita o campo de jogo.
Em outras
palavras, estamos diante de uma grave perturbação da ordem institucional, uma
violação do Estado de Direito. Há um golpe travestido de formalismo legal não
pelo rito processual do impeachment, mas pela aceitação do pedido de abertura
do processo, dado as razões insuficientes e a notória falta fundamentação
jurídica, da parte do senhor Presidente da Câmara dos Deputados. Dessa forma, o
país se tornou motivo de chacota e de pesar na imprensa internacional, ainda
mais pelo deprimente espetáculo de conotações circenses realizado na sessão
parlamentar que aprovou o envio do processo de impedimento de Dilma Rousseff ao
Senado Federal. É significativo o fato que, dos 367 deputados federais que
aprovaram o impeachment, apenas dois deles justificaram suas posições alegando
as pedaladas fiscais. A maioria deles mostraram total desconhecimento dos
meandros jurídicos de tão importante decisão, atribuindo a Deus, à família e a
outras razões risíveis a motivação de suas escolhas. Ficou evidente a distância
existente entre a população e a ampla maioria daqueles que constitucionalmente
são seus representantes. O parlamento brasileiro, a nossa Casa do Povo
transformou-se em um circo (dos horrores, diga-se), ou em um hospício onde são
tidos como loucos os que se portam como representantes da população de fato. Os
verdadeiros loucos, psicóticos, sociopatas são vistos como “pessoas de bem”,
“chefes de família”, democratas e patriotas.
Cabe salientar
também que nesse processo todo, pelas razões já apresentadas, a direita tornou-se
hegemônica nas ruas. Setores conservadores foram capazes de capitalizar e
atrair para si um misto de descontentamentos com a economia, moralismo de
classe baseado na hipocrisia, oposição as pautas progressistas centradas nos
direitos sociais, defesa de um autoritarismo de inspiração fascista,
preconceitos de toda a ordem advindo de uma parcela significativa dos setores
médios urbanos insatisfeitos com políticas públicas que beneficiaram os mais
pobres e que agora têm presença em espaços até então quase exclusivos da classe
média. A indignação original em relação à qualidade do transporte público
urbano foi revertida em manifestação apolítica de revolta contra a corrupção e
uma percepção pessimista em relação aos partidos políticos, o que somente acentua
a despolitização da política em que vivemos atualmente. A direita habilmente
continuou a mobilizar parcela da população retirando as demandas por direitos
das pautas de reinvindicação.
As esquerdas
têm um sério problema de comunicação com os segmentos da população que não tem
histórico de participação cidadã. Aqueles a quem os movimentos sociais procuram
demandar direitos e representar, os trabalhadores, os excluídos, a população
mais pobre que habita as favelas e periferias das grandes e médias cidades
brasileiras estão distantes de partidos e de outras organizações da sociedade
civil. Talvez a exceção seja o MST, mas esse movimento representa trabalhadores
rurais. Obviamente, houve belos momentos de resistência ao impedimento de Dilma
Roussef nas ruas desse país, mas quem visitou essas manifestações teve a
sensação de que os movimentos sociais, o PT, a frente Brasil Popular falava aos
seus. Ou seja, a quem já é militante ou de alguma forma já se engaja nesse tipo
de bandeira. Ou ainda a aqueles que, por conta de sua formação
escolar-acadêmica, exerce sua cidadania um nível acima da média da população.
Aqueles que trabalham doze horas diárias, os que usam os caquéticos ônibus
urbanos e trens metropolitanos, os que moram nas periferias e morros, enfim o povão
não compareceu para apoiar Dilma. Nem quando DJ Malboro e a Furacão 2000
(notórios representantes do funk carioca) convocaram, talvez tardiamente. Cabe
uma autocrítica profunda e uma revisão das suas metodologias de trabalho de
base. A que se pratica hoje tem revelado ser pouco eficiente em termos de
alcance e de produção de resultados eleitorais. E talvez isso possa custar aos
movimentos sociais e as esquerdas muitos anos de ostracismo até que possa ter
reais chances de reconquistar o poder na esfera federal.
Além disso,
muitos também se recusaram a ir às ruas em apoio à normalidade democrática com
receio de, ao invés de defender a democracia, dar sem querer um cheque em
branco ao PT por sua condução política, ou um atestado de apoio irrestrito aos
seus equívocos muito sérios na gestão da administração pública federal. Nada
justifica um Golpe de Estado, ainda que envergonhado, com aparente roupagem
legal. Mas a oposição a esse atentado contra a democracia não pode significar
absolver os desvios éticos no trato com a coisa pública que ocorreu nos últimos
catorze anos. O uso de esquemas de corrupção para garantir apoio parlamentar e
o financiamento de campanhas dos partidos da situação com recursos oriundos de
empresas estatais e de empreiteiras, tudo em nome da manutenção de um
condomínio político em esfera federal não poderia justificar as políticas
sociais compensatórias. E acabou contribuindo decisivamente para o isolamento
do PT e das esquerdas. Mesmo assim, Lula da Silva ainda aparece na liderança das
pesquisas de intenção de voto para a presidência da república. É um fenômeno
político de proporções significativas, onde a liderança carismática de um
dirigente de origem popular é capaz de mexer positivamente com o imaginário de
parcela significativa da população.
Diante de uma
gravíssima ruptura institucional, coisa em si muito perigosa, e analisando as
propostas de quem pretende ilegitimamente assumir o poder, estamos na iminência
de um novo ciclo político de hegemonia da direita. Propostas neoliberais
pautadas no ataque aos direitos dos trabalhadores, dos grupos LGBTs, dos
negros, dos jovens, serão a tônica do governo do usurpador Michel Temer. Basta
uma olhadela nos jornais a respeito do futuro ministério. Não se falará mais de
operação Lava Jato na mídia. Serão tempos difíceis. Aos setores progressistas,
em curto prazo, resta a mobilização de rua. Será suficiente? Encontrará eco na
população capaz de operar mudanças? O PT fará sua autocrítica? São
questões essenciais para tão delicado momento político. Uma coisa é certa:
todos esses acontecimentos fizeram implodir o edifício da Nova República. O
governo Dilma revelou a falência do presidencialismo de coalização tupiniquim.
É necessária uma nova configuração jurídico-política para o país. E ela está em
marcha. Só não há certeza se o que está se construindo aprofundará a democracia
brasileira ou se fará a sociedade brasileira retroceder para tempos de
infelizes memórias marcadas pelo obscurantismo político. E continuaremos
com a economia parada por muito tempo ainda.
[1] Leciona
no IFRJ – Campus Duque de Caxias, no Colégio Estadual Heitor Lira e na Escola
Pio XII.